valter hugo mãe e a "Sereia"
Eis o texto que valter hugo mãe escreveu a propósito de
A Sereia de Curitiba no número de Dezembro da DIF (páginas 48 e 49 – a edição completa pode ser descarregada em PDF aqui).
"Este livro de Rhys Hughes, o segundo do autor em Portugal, foi escrito originalmente em inglês mas com o fito de ser comercializado apenas em português. A tradução de Safaa Dib reveste-se, assim, de uma responsabilidade fulcral. Concebendo o autor este conjunto de pequenos contos para o público do português, procura-se com esta versão, e por natureza, optimizar esse elemento chave de todo o projecto: apagar o inglês e surpreendentemente partir como que do zero com a nossa tão inusitada língua.
Depois do excelente Uma Nova História Universal da Infâmia, também com a chancela da Livros de Areia, o volume A Sereia de Curitiba traz Hughes numa recolha do que nos parecem ideias para algo maior, aqui coligidas sob a égide do português para tantas vezes se ligar ao imaginário da lusofonia; desde logo, por apelar a lugares, como o evocado no título, ou como Lisboa e Madeira, ou por aludir a figuras muito características, como Hermínia Silva ou Fernando Pessoa.
Dizemos que estes textos coligem ideias para algo maior uma vez que, existindo embora uma circularidade de temas ou referências que, aqui e acolá, nos fornecem a sensação de uma mesma
tonalidade de narrativa que perpassa por todos os trechos, o que mais se manifesta é a habilidade de construir um labirinto, numa permissividade fantasista sem limites, que nos convence de que muitas das coisas estão por completar, pela necessidade de se realizarem plenamente mas, sobretudo, pela vontade que temos de saber mais, ou de, enfim, nos ser oferecido mais sobre determinadas passagens que nos agarram entusiasticamente.
Estamos perante um jogo ao jeito de Jorge Luis Borges e, até certo ponto, por causa de Jorge Luis Borges. Na verdade, o argentino deixou de parte a sereia quando escreveu o Livro dos Seres Imaginários, por opção ou esquecimento, e o que Hughes faz é voltar a reclamar para essa figura, metade mulher, metade peixe, o lugar eterno da perigosa encantadora dos homens.
O texto sobre o texto, como já há muito se não acreditaria voltar a fazer, ganha de novo sentido aqui. Isso acontece com sucesso por se revelar despido, ou seja, sem a pose filosofal de outros tempos, antes servindo de ironia taxativa, como se expondo e ironizando, um pouco por todo o lado, as intrincadas opções técnicas da escrita. Exemplar no que respeita à desconstrução do texto, também no sentido de apelar a Borges e ultrapassar toda a solenidade de outrora na criação literária, é o conto «Falsa alvorada de Papagaios», a encerrar o livro (antes ainda
de uma estranha secção de notas e de um epílogo esquisito):
«No centro desta história, encontrámos estas palavras: / No centro desta história, encontrámos estas palavras: / No centro desta história, encontrámos estas palavras… / Ainda bem que esse irritante truque literário não aconteceu!» (pag. 137).
Para uma ainda maior abrangência, Rhys Hughes pode deitar mão de um expediente novecentista e fazê-lo funcionar como já não parecia possível, criando um diálogo directo com o leitor que, levado ao extremo no conto «Cultos da Carga na Ilha do Beijo Picante», consegue criar momentos de excelência quando se ficciona a entrada do leitor no livro e este desata a falar, nada agradado com ser chamado ao paraíso em que vive o narrador:
«E chega deste disparate de “querido leitor”. Não há nada de querido sobre mim. Tenciono ser reles a partir de agora, o mais reles possível que conseguir ser, e isso é uma outra forma como tenciono arruinar o vosso paraíso vistoso.».
É por um fragmentário e voraz caminho que vamos sabendo sobre personagens que se desdobram em fantásticas situações, passando sempre por um certo absurdo que, as mais das vezes, conduz a um humor aberto. Para uma contemporaneidade ainda capaz de revisitar com novidade os grandes mitos, Rhys Hughes prova que a literatura será sempre intemporal, quando menos se espera obrigando-nos a acreditar em tudo o que já havíamos esquecido, para esplendor máximo de Borges, mas também de outros, sem dúvida, como Ítalo Calvino, um dos mais geniais escritores do século vinte.
Uma palavra para a Livros de Areia que, juntamente com a Tinta da China, me parece dos projectos editoriais melhor tabelados dos surgidos nos últimos anos. Com um catálogo irrepreensível, as suas edições são levadas a cabo com uma qualidade extrema, sendo marcada a aposta num design gráfico pouco comum entre nós, que passa pela utilização de caracteres particularmente grandes em títulos e pela proliferação de ilustrações. Nesta obra de Rhys Hughes podemos apreciar o trabalho do ilustrador Paulo Barros (vejam-no em barrospaulo.blogspot.com), um artista obrigatório; na página 140 encontrarão a imagem desta belíssima bicicleta-centauro que mostra melhor o que vos digo.
No blogue da editora (livrosdeareia.blogspot. com) encontrarão um pequeno manual de leitura de A Sereia de Curitiba e, se este é coisa de não perder, o manual também não está mal, e servirá de uma bela porta para o universo descomplicado, mas sério, da editora, que espero possam todos descobrir."
A Sereia de Curitiba no número de Dezembro da DIF (páginas 48 e 49 – a edição completa pode ser descarregada em PDF aqui).
"Este livro de Rhys Hughes, o segundo do autor em Portugal, foi escrito originalmente em inglês mas com o fito de ser comercializado apenas em português. A tradução de Safaa Dib reveste-se, assim, de uma responsabilidade fulcral. Concebendo o autor este conjunto de pequenos contos para o público do português, procura-se com esta versão, e por natureza, optimizar esse elemento chave de todo o projecto: apagar o inglês e surpreendentemente partir como que do zero com a nossa tão inusitada língua.
Depois do excelente Uma Nova História Universal da Infâmia, também com a chancela da Livros de Areia, o volume A Sereia de Curitiba traz Hughes numa recolha do que nos parecem ideias para algo maior, aqui coligidas sob a égide do português para tantas vezes se ligar ao imaginário da lusofonia; desde logo, por apelar a lugares, como o evocado no título, ou como Lisboa e Madeira, ou por aludir a figuras muito características, como Hermínia Silva ou Fernando Pessoa.
Dizemos que estes textos coligem ideias para algo maior uma vez que, existindo embora uma circularidade de temas ou referências que, aqui e acolá, nos fornecem a sensação de uma mesma
tonalidade de narrativa que perpassa por todos os trechos, o que mais se manifesta é a habilidade de construir um labirinto, numa permissividade fantasista sem limites, que nos convence de que muitas das coisas estão por completar, pela necessidade de se realizarem plenamente mas, sobretudo, pela vontade que temos de saber mais, ou de, enfim, nos ser oferecido mais sobre determinadas passagens que nos agarram entusiasticamente.
Estamos perante um jogo ao jeito de Jorge Luis Borges e, até certo ponto, por causa de Jorge Luis Borges. Na verdade, o argentino deixou de parte a sereia quando escreveu o Livro dos Seres Imaginários, por opção ou esquecimento, e o que Hughes faz é voltar a reclamar para essa figura, metade mulher, metade peixe, o lugar eterno da perigosa encantadora dos homens.
O texto sobre o texto, como já há muito se não acreditaria voltar a fazer, ganha de novo sentido aqui. Isso acontece com sucesso por se revelar despido, ou seja, sem a pose filosofal de outros tempos, antes servindo de ironia taxativa, como se expondo e ironizando, um pouco por todo o lado, as intrincadas opções técnicas da escrita. Exemplar no que respeita à desconstrução do texto, também no sentido de apelar a Borges e ultrapassar toda a solenidade de outrora na criação literária, é o conto «Falsa alvorada de Papagaios», a encerrar o livro (antes ainda
de uma estranha secção de notas e de um epílogo esquisito):
«No centro desta história, encontrámos estas palavras: / No centro desta história, encontrámos estas palavras: / No centro desta história, encontrámos estas palavras… / Ainda bem que esse irritante truque literário não aconteceu!» (pag. 137).
Para uma ainda maior abrangência, Rhys Hughes pode deitar mão de um expediente novecentista e fazê-lo funcionar como já não parecia possível, criando um diálogo directo com o leitor que, levado ao extremo no conto «Cultos da Carga na Ilha do Beijo Picante», consegue criar momentos de excelência quando se ficciona a entrada do leitor no livro e este desata a falar, nada agradado com ser chamado ao paraíso em que vive o narrador:
«E chega deste disparate de “querido leitor”. Não há nada de querido sobre mim. Tenciono ser reles a partir de agora, o mais reles possível que conseguir ser, e isso é uma outra forma como tenciono arruinar o vosso paraíso vistoso.».
É por um fragmentário e voraz caminho que vamos sabendo sobre personagens que se desdobram em fantásticas situações, passando sempre por um certo absurdo que, as mais das vezes, conduz a um humor aberto. Para uma contemporaneidade ainda capaz de revisitar com novidade os grandes mitos, Rhys Hughes prova que a literatura será sempre intemporal, quando menos se espera obrigando-nos a acreditar em tudo o que já havíamos esquecido, para esplendor máximo de Borges, mas também de outros, sem dúvida, como Ítalo Calvino, um dos mais geniais escritores do século vinte.
Uma palavra para a Livros de Areia que, juntamente com a Tinta da China, me parece dos projectos editoriais melhor tabelados dos surgidos nos últimos anos. Com um catálogo irrepreensível, as suas edições são levadas a cabo com uma qualidade extrema, sendo marcada a aposta num design gráfico pouco comum entre nós, que passa pela utilização de caracteres particularmente grandes em títulos e pela proliferação de ilustrações. Nesta obra de Rhys Hughes podemos apreciar o trabalho do ilustrador Paulo Barros (vejam-no em barrospaulo.blogspot.com), um artista obrigatório; na página 140 encontrarão a imagem desta belíssima bicicleta-centauro que mostra melhor o que vos digo.
No blogue da editora (livrosdeareia.blogspot. com) encontrarão um pequeno manual de leitura de A Sereia de Curitiba e, se este é coisa de não perder, o manual também não está mal, e servirá de uma bela porta para o universo descomplicado, mas sério, da editora, que espero possam todos descobrir."
2 Comments:
Abraço o amor de cada grão, dedicado em cada “livro de areia”
;)>
Divulgação
Um Blog ,dois livros!
“Camarada Choco”
e
“Camarada Choco 2”
António Miguel Brochado de Miranda
Papiro Editora
Papelaria “Bulhosa” Oeiras Parque, Papelarias “Bulhosa”, FNAC ou www.livrosnet.com
Tema: Haverá uma fronteira entre os Aparafusados e os Desaparafusados?"
Filmes de Apresentação no “Youtube” em “Camarada Choco”
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