"A Olga tinha cura para quase todas as doenças e a minha admiração por ela crescia consideravelmente. As pessoas vinham ter com ela com um variado espectro de queixas e ela ajudava-as sempre. Quando apareceu um homem com dor de ouvidos, a Olga lavou-as com óleo de cominho, inseriu em cada ouvido um pedaço de linho moldado em forma de clarim e embebido em cera quente, e pegou-lhe fogo do lado de fora. O doente, que estava preso a uma mesa, gritava de dor, à medida que o fogo queimava o que restava do tecido dentro do ouvido. Então, ela soprou prontamente o resíduo, ou a “serradura”, como lhe chamava, do ouvido e depois cobriu a zona queimada com um unguento feito à base de sumo de uma cebola, a bílis de um bode ou de um coelho e um pouco de vodka em bruto.
Ela também extraía furúnculos, tumores e quistos, e tirava dentes podres. Conservava os furúnculos extirpados em vinagre, até ficarem marinados e poderem ser usados como remédio. Drenava cuidadosamente o pus que supurava das feridas para chávenas especiais e deixava-o a fermentar durante vários dias. Quanto aos dentes que arrancava, eu próprio os pulverizava no grande almofariz e o pó resultante era posto a secar em pedaços de tronco de árvore, em cima do forno.
Por vezes, a meio da noite, um camponês assustado entrava pela cabana adentro, à procura da Olga, e lá ia ela fazer um parto, cobrindo-se com um grande abafo e tremendo de frio e falta de sono. Quando uma das aldeias vizinhas pedia a sua presença e só regressava vários dias depois, era eu quem cuidava da cabana, dando de comer aos animais e mantendo o lume aceso.
Apesar da Olga falar num dialecto estranho, acabámos por nos entender muito bem. No Inverno, quando se abatia uma tempestade e a aldeia se encontrava cingida pelo estreito abraço das neves intransponíveis, sentávamo-nos juntos na quente cabana e a Olga falava-me sobre todos os filhos de Deus e todos os espíritos de Satanás.
Chamava-me o Negro. Foi graças a ela que soube pela primeira vez que era possuído por um espírito maligno, que se escondera em mim como uma toupeira numa cova profunda e cuja presença eu ignorava. Uma pessoa como eu, possuída por tal espírito maligno, podia ser reconhecida pelos seus enfeitiçados olhos negros, que não pestanejavam quando encaravam olhos claros e brilhantes. Deste modo, afirmava a Olga, eu podia fitar as outras pessoas e, sem saber, lançar-lhes um feitiço.
Os olhos encantados não só podem lançar um feitiço como também podem anulá-lo, explicou-me. Era necessário que tivesse o cuidado de, ao olhar para pessoas ou animais ou até mesmo cereais, esvaziar a cabeça de tudo que não a doença que estava a ajudar a Olga a retirar deles. Isto porque, quando os olhos enfeitiçados olham para uma criança saudável, começa imediatamente a definhar; quando olham para um vitelo, este sucumbe a uma doença repentina; quando olham para os campos, o feno apodrece depois da colheita.
Este espírito maligno que se escondia em mim atraía, devido à sua própria natureza, outros seres misteriosos. Espectros flutuavam ao meu redor. Um espectro é silencioso, reservado e é raro vê-lo. Contudo, é persistente: prega rasteiras às pessoas nos campos e nas florestas, espreita para dentro das cabanas, pode transformar-se num gato arisco ou num cão raivoso e lamenta-se quando está zangado. À meia-noite, transforma-se em alcatrão quente.
Os fantasmas sentem-se atraídos por espíritos malignos. São pessoas há muito falecidas, condenadas à danação eterna, que voltam à vida apenas quando há lua cheia, possuidoras de poderes sobre-humanos e cujos olhos estão sempre lugubremente virados para Este.
Os vampiros, provavelmente a mais perigosa destas ameaças intangíveis devido ao facto de assumirem frequentemente forma humana, também se sentem atraídos por pessoas possuídas. Os vampiros são pessoas que foram afogadas sem terem sido baptizadas ou que foram abandonadas pelas mães. Até aos sete anos, crescem na água ou nas florestas, altura em que voltam a tomar a forma humana e, transformando-se em vagabundos, tentam insaciavelmente obter acesso a igrejas católicas ou uniatas, sempre que podem. Quando conseguem fazer o seu ninho nas igrejas, andam sempre num rebuliço em torno do altar, sujam as imagens dos santos, maliciosamente, mordem, partem ou destroem os objectos sagrados e, sempre que possível, sugam o sangue dos homens quando estes estão a dormir.
A Olga desconfiava que eu era um vampiro e dizia-mo de vez em quando. Para controlar os desejos do meu espírito maligno e evitar a sua metamorfose em fantasma ou espectro, preparava todas as manhãs um elixir amargo que tinha de beber enquanto comia um pedaço de carvão esfregado com alho. Também era temido por outras pessoas. Sempre que tentava andar sozinho pela aldeia, as pessoas viravam a cabeça e faziam o sinal da cruz. Para além disso, as mulheres grávidas fugiam de mim a correr, em pânico. Os camponeses mais ousados soltavam-me os cães e, se não tivesse aprendido a escapar rapidamente e a manter-me sempre por perto da cabana da Olga, não teria regressado com vida de nenhuma dessas excursões.
Normalmente, permanecia na cabana, a evitar que um gato albino matasse uma galinha engaiolada, que era preta e extremamente rara, e de grande valor para a Olga. Também fitava os olhos inexpressivos dos sapos, que saltavam num recipiente alto, mantinha o lume do fogão aceso, mexia infusões fervilhantes e descascava batatas podres, juntando cuidadosamente numa caneca o bolor esverdeado que a Olga aplicava em feridas e nódoas negras.
A Olga era extremamente respeitada na aldeia e, quando a acompanhava, não temia ninguém. Pediam-lhe frequentemente que borrifasse os olhos do gado, de modo a protegê-los de qualquer feitiço malicioso enquanto eram levados para o mercado. Mostrava aos camponeses a forma como deviam cuspir três vezes ao comprar um porco e como alimentar uma toira com um pão especial, que continha uma erva santificada, antes de a acasalarem com um touro. Nenhum habitante da aldeia comprava um cavalo ou uma vaca até a Olga ter decretado que o animal continuaria saudável. Despejava-lhe água em cima e, depois de ver a forma como se sacudia, pronunciaria o veredicto do qual o preço e, frequentemente, a própria venda dependiam."
(foto de Jerzy Kosinski: © Krzysztof Gieraltowski /
tradução de Luísa Ferreira e Joana Taborda)