Livros de Areia

quinta-feira, 28 de setembro de 2006

Jeff VanderMeer lendo Jeff VanderMeer



"The Exchange", com ilustrações de Eric Schalle.

quarta-feira, 27 de setembro de 2006

O Pássaro Pintado está a chegar


"A Olga tinha cura para quase todas as doenças e a minha admiração por ela crescia consideravelmente. As pessoas vinham ter com ela com um variado espectro de queixas e ela ajudava-as sempre. Quando apareceu um homem com dor de ouvidos, a Olga lavou-as com óleo de cominho, inseriu em cada ouvido um pedaço de linho moldado em forma de clarim e embebido em cera quente, e pegou-lhe fogo do lado de fora. O doente, que estava preso a uma mesa, gritava de dor, à medida que o fogo queimava o que restava do tecido dentro do ouvido. Então, ela soprou prontamente o resíduo, ou a “serradura”, como lhe chamava, do ouvido e depois cobriu a zona queimada com um unguento feito à base de sumo de uma cebola, a bílis de um bode ou de um coelho e um pouco de vodka em bruto.
Ela também extraía furúnculos, tumores e quistos, e tirava dentes podres. Conservava os furúnculos extirpados em vinagre, até ficarem marinados e poderem ser usados como remédio. Drenava cuidadosamente o pus que supurava das feridas para chávenas especiais e deixava-o a fermentar durante vários dias. Quanto aos dentes que arrancava, eu próprio os pulverizava no grande almofariz e o pó resultante era posto a secar em pedaços de tronco de árvore, em cima do forno.
Por vezes, a meio da noite, um camponês assustado entrava pela cabana adentro, à procura da Olga, e lá ia ela fazer um parto, cobrindo-se com um grande abafo e tremendo de frio e falta de sono. Quando uma das aldeias vizinhas pedia a sua presença e só regressava vários dias depois, era eu quem cuidava da cabana, dando de comer aos animais e mantendo o lume aceso.
Apesar da Olga falar num dialecto estranho, acabámos por nos entender muito bem. No Inverno, quando se abatia uma tempestade e a aldeia se encontrava cingida pelo estreito abraço das neves intransponíveis, sentávamo-nos juntos na quente cabana e a Olga falava-me sobre todos os filhos de Deus e todos os espíritos de Satanás.
Chamava-me o Negro. Foi graças a ela que soube pela primeira vez que era possuído por um espírito maligno, que se escondera em mim como uma toupeira numa cova profunda e cuja presença eu ignorava. Uma pessoa como eu, possuída por tal espírito maligno, podia ser reconhecida pelos seus enfeitiçados olhos negros, que não pestanejavam quando encaravam olhos claros e brilhantes. Deste modo, afirmava a Olga, eu podia fitar as outras pessoas e, sem saber, lançar-lhes um feitiço.
Os olhos encantados não só podem lançar um feitiço como também podem anulá-lo, explicou-me. Era necessário que tivesse o cuidado de, ao olhar para pessoas ou animais ou até mesmo cereais, esvaziar a cabeça de tudo que não a doença que estava a ajudar a Olga a retirar deles. Isto porque, quando os olhos enfeitiçados olham para uma criança saudável, começa imediatamente a definhar; quando olham para um vitelo, este sucumbe a uma doença repentina; quando olham para os campos, o feno apodrece depois da colheita.
Este espírito maligno que se escondia em mim atraía, devido à sua própria natureza, outros seres misteriosos. Espectros flutuavam ao meu redor. Um espectro é silencioso, reservado e é raro vê-lo. Contudo, é persistente: prega rasteiras às pessoas nos campos e nas florestas, espreita para dentro das cabanas, pode transformar-se num gato arisco ou num cão raivoso e lamenta-se quando está zangado. À meia-noite, transforma-se em alcatrão quente.
Os fantasmas sentem-se atraídos por espíritos malignos. São pessoas há muito falecidas, condenadas à danação eterna, que voltam à vida apenas quando há lua cheia, possuidoras de poderes sobre-humanos e cujos olhos estão sempre lugubremente virados para Este.
Os vampiros, provavelmente a mais perigosa destas ameaças intangíveis devido ao facto de assumirem frequentemente forma humana, também se sentem atraídos por pessoas possuídas. Os vampiros são pessoas que foram afogadas sem terem sido baptizadas ou que foram abandonadas pelas mães. Até aos sete anos, crescem na água ou nas florestas, altura em que voltam a tomar a forma humana e, transformando-se em vagabundos, tentam insaciavelmente obter acesso a igrejas católicas ou uniatas, sempre que podem. Quando conseguem fazer o seu ninho nas igrejas, andam sempre num rebuliço em torno do altar, sujam as imagens dos santos, maliciosamente, mordem, partem ou destroem os objectos sagrados e, sempre que possível, sugam o sangue dos homens quando estes estão a dormir.
A Olga desconfiava que eu era um vampiro e dizia-mo de vez em quando. Para controlar os desejos do meu espírito maligno e evitar a sua metamorfose em fantasma ou espectro, preparava todas as manhãs um elixir amargo que tinha de beber enquanto comia um pedaço de carvão esfregado com alho. Também era temido por outras pessoas. Sempre que tentava andar sozinho pela aldeia, as pessoas viravam a cabeça e faziam o sinal da cruz. Para além disso, as mulheres grávidas fugiam de mim a correr, em pânico. Os camponeses mais ousados soltavam-me os cães e, se não tivesse aprendido a escapar rapidamente e a manter-me sempre por perto da cabana da Olga, não teria regressado com vida de nenhuma dessas excursões.
Normalmente, permanecia na cabana, a evitar que um gato albino matasse uma galinha engaiolada, que era preta e extremamente rara, e de grande valor para a Olga. Também fitava os olhos inexpressivos dos sapos, que saltavam num recipiente alto, mantinha o lume do fogão aceso, mexia infusões fervilhantes e descascava batatas podres, juntando cuidadosamente numa caneca o bolor esverdeado que a Olga aplicava em feridas e nódoas negras.
A Olga era extremamente respeitada na aldeia e, quando a acompanhava, não temia ninguém. Pediam-lhe frequentemente que borrifasse os olhos do gado, de modo a protegê-los de qualquer feitiço malicioso enquanto eram levados para o mercado. Mostrava aos camponeses a forma como deviam cuspir três vezes ao comprar um porco e como alimentar uma toira com um pão especial, que continha uma erva santificada, antes de a acasalarem com um touro. Nenhum habitante da aldeia comprava um cavalo ou uma vaca até a Olga ter decretado que o animal continuaria saudável. Despejava-lhe água em cima e, depois de ver a forma como se sacudia, pronunciaria o veredicto do qual o preço e, frequentemente, a própria venda dependiam."

(foto de Jerzy Kosinski: © Krzysztof Gieraltowski /
tradução de Luísa Ferreira e Joana Taborda)

terça-feira, 26 de setembro de 2006

El milagro secreto

...e fazei com que neste novo Outono o nosso trabalho seja, ao mesmo tempo, tão preciso e eficiente como o destes,...



... e tão mágico e definitivo como o destoutros. Agradecidos.

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Tropicália



A areia que trazemos no nome é, agora, mais tropical. Em breve, os leitores de Luanda poderão encontrar-nos na livraria Chá de Caxinde (foto aqui). Tudo graças ao profissionalismo e simpatia do livreiro e editor Jacques dos Santos, a quem agradecemos ainda a diligência e determinação. Esperamos que gostem e que saboreiem os livros, quem sabe entrecortando a leitura com mais um olhar para a baía...

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

"Vamos deixar passar um anjo?"

Era agoráfobo, tímido e de saúde muito débil. Nas ruas de Paris encontrou outro desalinhado, um polaco sem trabalho, com quem formou uma das duplas mais improváveis da história do cinema: a sua escrita cheia de alusões subtis e eruditas, e plena de ironia, encaixava na perfeição com a linguagem visual do seu companheiro. O cinema europeu é impensável sem o seu nome. Solitários, gente que via a vida de dentro do quarto para fora, gente que não cabia, loosers poéticos, sonhadores condenados: estão lá todos nos seus melhores filmes, sobretudo os que escreveu em dupla com Polanski. Se Beckett tivesse dito sim, só eles os dois teriam podido adaptar Godot. Em vez disso, fizeram Cul-de-Sac (1966, com o actor favorito de Beckett, Jack MacGowran) e What?(1973). E deixaram testamento: The Tenant (1976) é a visão tenebrosa e distorcida do que é ser doente, estrangeiro, só e pobre em Paris.
Quem viu Dance of the Vampires (1967) tantas vezes quantas devia, sabe que o título deste post é de um dos diálogos mais brilhantes desse filme. E recorda-se do Manual do Estudante Enamorado, uma edição fictícia da Universidade de Koenigsberg de 1832, onde se recomendava que, de mão sobre o ombro da amada, se "deixasse passar um anjo"... Para Gerard Brach, estava tudo nestes detalhes. (PM)


Addendum: onde mais senão em Inglaterra (onde o trabalho da dupla nunca foi esquecido), e onde mais senão no Guardian: um excelente texto de obituário sobre Brach.

domingo, 17 de setembro de 2006

E como não concordar?


Mário Santos, do Mil Folhas (Público, 15.09), escolheu a Transformação de Martin Lake como livro da semana.
"Quem é que não fica com vontade de ler?", conclui. Agradecemos e concordamos. E para os que realmente ficarem com vontade de ler e, por uma razão ou outra, não encontrarem o livro: contamos ter alguns exemplares à venda durante o Fórum Fantástico. Os que restarem, obviamente.

terça-feira, 12 de setembro de 2006

Ainda o Fórum Fantástico

Faltou acrescentar que o Rhys Hughes voltará, meio vontade nossa (para, com outros convidados, falar de Borges e da sua ligação a ele através da Nova História Universal da Infâmia, numa mesa do Fórum que vai recordar o argentino nestes 20 anos da sua morte), meio desejo da Safaa Dib e do Rogério Ribeiro, da Épica, pois um Fórum sem a sombra tutelar do galês já quase nem parece Fórum...

Cenas de uma comunidade lusófona

Enviar um determinado livro em Correio Normal, com os devidos carimbos que indicam envio de livro expedido pelo Editor, para o território português, custa-nos 0,51 euros. Enviar o mesmo livro, nas mesmas condições, para o Brasil, custa-nos mais de 5 euros... E se queremos enviá-lo à Cobrança... não podemos.
Vender livros para Angola? Fantástico, mas... os portes custam quase metade do preço acordado com os livreiros.
Comuniquê?

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Apontando ao Fórum Fantástico

Não estaremos adormecidos na rentrée, antes totalmente concentrados no evento que nos viu nascer: o Fórum Fantástico de Lisboa, organizado pela Épica, este ano na sua 3.ª edição. Aí apresentaremos (tudo aponta para isso), e finalmente(!), a nossa edição desse poderoso romance sobre o horror do homem contemporâneo: O pássaro pintado de Jerzy Kosinski. Quase 40 anos depois de uma primeira e mal-fadada (i.e, censurada e retirada do mercado) edição da Ulisseia, esperamos poder definitivamente confirmar a força deste texto na sua versão portuguesa. Ainda apresentaremos uma pequena e inédita surpresa para marcar o nosso primeiro ano de actividade: podemos dizer que envolve o bom velho Walt Disney, uma esquadra sinistra de Dumbos voadores e outros inconfessáveis frutos da imaginação do senhor João Barreiros. Será uma edição limitada e exclusiva do Fórum: só quem por lá passar poderá comprá-la. Vão espreitando para saberem mais novidades.

domingo, 10 de setembro de 2006

Index

São três livreiras, repartidas por dois espaços muito agradáveis e recatados no Porto (um dos quais é certamente um dos pontos mais belos da cidade). São profissionais e simpáticas. Promovem os livros e promovem os contactos entre a comunidade de leitores e os que fazem os livros. E no meio disto tudo, vendem e pagam. Que mais pode uma pequena editora pedir? Visitem o blogue, que acabou de estrear. E dêem um salto à esquina do Palácio de Cristal e à Cooperativa Árvore.

Ambergris sob o olhar de arquitectos

Quando um escritor obcecado com urbanismo arcano e megalópoles orgânicas e crípticas se deixa entrevistar por estudiosos do urbanismo e da arquitectura, temos... isto: uma entrevista cheia de sumo a Jeff VanderMeer (e muito bem ilustrada). Esperamos agora pelos prolongamentos lisboetas e sintrenses do corpus urbanístico de Ambergris.

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Um trailer e uma vénia

Uma vénia a Isabel Coutinho, responsável pelo Mil Folhas. Confessamos que já não esperávamos, mas eis que aquilo que ela nos tinha prometido - dar uma vista de olhos no filmezinho sobre Futebol: sol e sombra que temos no nosso site - se concretiza, e disso dá ela conta em mais um "Ciberscritas", onde retoma o assunto dos trailers de livros. Não tínhamos pensado exactamente no filme como um trailer para o livro de Galeano, mas depois de ler o primeiro "Ciberscritas" sobre o tema apercebemo-nos de que, de facto, podia sê-lo. Devido a especificidades do Java, não podem vê-lo directamente do blogue, mas se forem aqui, só têm de clicar em "Veja". (Não há ficha técnica, mas para os mais curiosos: o tango é de Gardel e chama-se Dandy, os relatos são históricos, de 1950, com a voz de Ary Barroso, de 1954, a cargo de Heribert Zimmerman, e do golo de Pelé na final de 1970, e o Maracatu Atómico de Gil dá o ritmo nos segundos finais, onde se mistura um pouco de Candombe uruguaio.)

Ambergris: uma colagem europeia

Eis a primeira versão do filme da tournée europeia dos VanderMeers, realizado por Ann VanderMeer. Ambergris vista e composta através de outras cidades, com Lisboa (ou melhor, Sintra) em algum destaque. Aguardem a versão completa, já com as talking heads.

sexta-feira, 1 de setembro de 2006

A acabar...


...enfim, ainda aceitaremos encomendas dos que estiveram demasiado distraídos em Agosto, mas só durante esta primeira semana de Setembro.