Livros de Areia

sábado, 27 de janeiro de 2007

Confissões de uma Pulga

“O meu Desmodus rotundus habitava na companhia de uma centena dos seus congéneres no interior de uma profunda gruta rochosa. Ali era fresco. Escuridão e frescura, e numa dada tarde dormíamos calmamente até que entraram uns humanos. Eram conquistadores espanhóis, e quando os morcegos se assustaram e começaram a voar estouvadamente dentro da gruta, os soldados, que também se sobressaltaram, começaram a disparar os seus arcabuzes. Pum!, pum!, pum! Foi a primeira vez que cheirei, através do focinho de um hospedeiro, o aroma agridoce da pólvora incendiada. O meu Desmodus rotundus foi dos primeiros a cair. Ao notar que o seu sangue começava a esfriar empreendi a procura de outro hóspede. E foi assim que entrei na orelha de Giorolamo Benzoni, que não era espanhol mas italiano: um estudioso veneziano que acompanhava os conquistadores. Com ele viajei pela primeira vez para Itália e deleitei-me com o espectáculo da arte mais maravilhosa da época. Este foi, para mim, um período de intensa aprendizagem.
Quando Giorolamo morreu saltei para a orelha de um religioso, o padre Giorgio da Luppi, que em pouco tempo mercê da minha ajuda, adquiriu a dignidade de cardeal e foi enviado à
Polónia em missão diplomática, onde o meu hospedeiro – outra vez graças a seguir os meus bons conselhos – logrou converter ao catolicismo Esteban I Báthori, que também era, nessa época, princípe da Transilvânia. Certo dia em que Erzsébet, sobrinha do rei, visitava a corte, Giorgio da Luppi bebeu, durante o banquete de gala, de um copo envenenado e a sua santa cabeça caiu
com estrépito sobre a mesa dos manjares. Que asco!, exclamou Erzsébet Báthory ao reparar que a cabeça cardinalícia tinha ido parar a uma bandeja de faisões cozinhados em azeite a ferver."

Lázaro Covadlo,
Criaturas da noite
06.02.2007, 22 horas, Correntes d'Escritas / Póvoa de Varzim