Confissões de uma Pulga

“O meu Desmodus rotundus habitava na companhia de uma centena dos seus congéneres no interior de uma profunda gruta rochosa. Ali era fresco. Escuridão e frescura, e numa dada tarde dormíamos calmamente até que entraram uns humanos. Eram conquistadores espanhóis, e quando os morcegos se assustaram e começaram a voar estouvadamente dentro da gruta, os soldados, que também se sobressaltaram, começaram a disparar os seus arcabuzes. Pum!, pum!, pum! Foi a primeira vez que cheirei, através do focinho de um hospedeiro, o aroma agridoce da pólvora incendiada. O meu Desmodus rotundus foi dos primeiros a cair. Ao notar que o seu sangue começava a esfriar empreendi a procura de outro hóspede. E foi assim que entrei na orelha de Giorolamo Benzoni, que não era espanhol mas italiano: um estudioso veneziano que acompanhava os conquistadores. Com ele viajei pela primeira vez para Itália e deleitei-me com o espectáculo da arte mais maravilhosa da época. Este foi, para mim, um período de intensa aprendizagem.
Quando Giorolamo morreu saltei para a orelha de um religioso, o padre Giorgio da Luppi, que em pouco tempo mercê da minha ajuda, adquiriu a dignidade de cardeal e foi enviado à
Polónia em missão diplomática, onde o meu hospedeiro – outra vez graças a seguir os meus bons conselhos – logrou converter ao catolicismo Esteban I Báthori, que também era, nessa época, princípe da Transilvânia. Certo dia em que Erzsébet, sobrinha do rei, visitava a corte, Giorgio da Luppi bebeu, durante o banquete de gala, de um copo envenenado e a sua santa cabeça caiu
com estrépito sobre a mesa dos manjares. Que asco!, exclamou Erzsébet Báthory ao reparar que a cabeça cardinalícia tinha ido parar a uma bandeja de faisões cozinhados em azeite a ferver."

Lázaro Covadlo, Criaturas da noite
06.02.2007, 22 horas, Correntes d'Escritas / Póvoa de Varzim

Kosinski e os fractais

Uma fascinante história que relaciona Jerzy Kosinski, o pai do autor deste texto e a geometria dos fractais. Três cartas enviadas, três cartas respondidas, a poucos dias do suicídio do autor e a poucos meses da morte do seu correspondente. Isto dava um conto. (O artigo é de Gabriel Bañez no excelente blogue argentino Nación Apache; a imagem é da capa do livro obrigatório para conhecer o autor sem a estridência dos "escândalos")

A verdade e os factos

"Como romancista, procuro a verdade e não os factos, e tenho idade suficiente para distinguir entre eles." (Jerzy Kosinksi, 1983)

Tivemos a chance de poder ver, finalmente, o documentário Sex, Lies and Jerzy Kosinski, emitido pela BBC em 1995, graças à amabilidade de David Hill, o seu montador. Muitas perguntas por responder, e mais ainda por formular, num filme feito muito perto dos acontecimentos - o próprio título denota essa urgência - e ao qual faltou o distanciamento adequado. De Kosinki a estrela das letras americanas, o explorador sexual, o dandy: muita coisa. De Kosinski o escritor, o criador: quase nada. Uma aproximação à figura de Mayakovski - esse outro suicida caído das graças da crítica e do mundo - teria sido interessante. Kosinski cita-o abundantemente, inclusivamente no seu último livro, onde refaz os passos do russo em Nova Iorque. Ainda assim, um filme fascinante (realizado por Agnieszka Piotrowska, e nomeado em 1995 para um Emmy e um BAFTA), que não vai fazer adeptos do homem, mas que consegue atrair leitores aos seus livros. Pode ser que o BBC Prime o passe um destes dias. No YouTube, David Hill colocou um excerto para amostra aqui.

Nas Correntes

Estaremos na edição das Correntes d'Escritas deste ano, que abre no próximo dia 7 de Fevereiro, na Póvoa de Varzim. Apresentaremos Criaturas da noite de Lázaro Covadlo. Em breve, mais pormenores.

Depois da treta, a verdade

Após a publicação de Da treta em 2006, publicaremos a edição portuguesa de On Truth (Da Verdade), completando assim o díptico de Harry G. Frankfurt sobre a deriva comunicacional dos nossos tempos. Não precisam de agradecer já: daqui a uns anos estará tudo na mesma...
A imagem é da entrevista de Harry Frankfurt a Jon Stewart no Daily Show (09.01.2007).

Blogger convidado

Teremos em breve a distinta honra de receber nesta humilde casa, como blogger convidado, o Luís Rodrigues. Algo perfeitamente normal, dadas as ligações que ele tem já ao nosso projecto. Carta branca, rédea solta. E só não lhe indicamos o caminho do escritório sem janelas ao fundo da sala, junto à máquina de café e perto da mesa da nova telefonista, porque isto não é um velho filme de Hollywood.

Os melhores de 2006 (ainda)

Esta coisa dos melhores do ano pode degenerar em neuroses depressivas ou em ligeiros pruridos que o tempo cura sem sequelas. Seja como for, é agradável saber que, de alguma forma, 3 (três) dos nossos títulos acabaram na lista provisória para os 1o Melhores Livros de Ficção Estrangeira de 2006 que Francisco José Viegas, no seu programa da RDP / Antena 1 "Escrita em Dia", está a promover. (O livro de Galeano talvez ficasse melhor na Não-Ficção, mas não somos esquisitos com géneros...) A votação termina a 25 de Janeiro. Seja qual for o resultado final, esta é já uma honra que faremos por merecer no futuro.

Alguém nos leu em Espanha

E disso fez registo aqui. Já conhecíamos este blogue a partir do de George Cassiel e do Extratexto. Pois bem, nunca é tarde para acrescentar mais um link na lista das afinidades: Con Valor.

Coisas novas em 2007

Enviada pelo sempre atento Nuno Santos, esta notícia: máquinas de produção instantânea de livros a pedido, funcionando como simples ATM (terminais de "multibanco") que, em vez de notas, nos entregam em minutos o livro pronto. A primeira chega já no próximo mês à Biblioteca Pública de Nova Iorque.
É um salto radical, mas lógico, em relação às máquinas de venda de livros que já se usam pela Europa e América fora. Resta saber se a qualidade do produto final compensa e qual a articulação com os produtores do conteúdo, isto é, os editores.

José Luís Peixoto leu e gostou

Nunca nos passou pela cabeça que, no mês e meio em que
O pássaro pintado esteve à venda no ano passado (saiu a 16 de Novembro), um autor tão ocupado e requisitado como José Luís Peixoto - ainda para mais com novo e badalado romance nas montras - tivesse tido tempo para ler o livro de Kosinski. Foi o que aconteceu, pelos vistos, e ao ponto de ele ter gostado tanto que o colocou na sua lista pessoal dos melhores livros editados em 2006, que, entre outras escolhas, o Mil Folhas publicou hoje. Se não fosse piroso, faziamos uma vénia. Ainda assim, coramos com a surpresa e esperamos sinceramente que continue a gostar.

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