Haverá livros intraduzíveis? Não me refiro a uma incapacidade técnica do tradutor para saltar as barreiras que o livro lhe ponha à frente, mas, simplesmente, à ideia de traição, ou, pior ainda, de pura perda de tempo na tarefa de traduzir um livro que, pela sua manifesta inadequação linguística ao mercado e espaço mental português, pede para que o deixem em paz e o fruam na sua língua de origem. Esse pensamento tem-me vindo à mente quando leio, melhor, quando vou provando, bocado a bocado, de forma não linear,
Invisible Forms de Kevin Jackson. Soube dele, através das aulas do Rui Zink na pós-graduação de Edição na Nova, em 2003, e nunca mais me saiu da cabeça. Como foi possível a um autor quase desconhecido pegar numa ideia tão antiga e árida de Isaac D'Israeli (
Curiosities of Literature, 1791) e criar um livro tão completo, tão irresistível e tão divertido, tão essencial e desavergonhadamente
witty? A massa de citações, notas de rodapé e demais aparelhos literários é de tal ordem, mas de tal forma bem conjugada e articulada que nos sentimos a afundar sem luta não no pântano erudito que temíamos, mas numa morna e calórica taça de ponche frutado. Mas o gozo será, creio, apenas dentro de um quadro de leitura em inglês: o
wordplay e as
in jokes são de tal ordem que, por exemplo, o capítulo relativo às
Notas de Rodapé correria o risco de ser, pura e simplesmente, ilegível...
Na altura, instado a escrever uma nota crítica, recorri , talvez com pouca inspiração, a uma metáfora futebolística. Pois bem, teimosamente mantenho: Jackson é o Cruyff da erudição literária, que faz com que algo inacessível, incompreensível ou apenas entediante se transforme em algo nosso, imprescindível e de que sentimos fazer parte, por meio de uma exibição curta, virtuosa e altamente eficaz. Pura
effortlessness (lá está...). Se a cultura fosse jogada desta forma, não haveria necessidade de regulamentações de leitura em planos nacionais.
(PM)