A poucos dias do lançamento do último(?) volume da saga Potteriana, é difícil não reconhecer o esmagador poder com que esta série de livros tem tiranizado todo o sistema de comercialização de livros na última década. Juntamente com os livros de Dan Brown, este
opus de J.K. Rowling moldou a face da procura e as estratégias da oferta.
Não sendo um leitor ou apreciador da série (e apesar de ter gostado muito do documentário
J.K. Rowling: Harry Potter and Me da BBC, que me fez pensar que a série seria até bem mais interessante sem o
hype mastodôntico à sua volta, dadas as qualidades da personalidade da autora, o seu inesperado domínio do desenho e os seus mais do que aparentes fantasmas no armário), esta tirania é-me sobretudo pesada na qualidade de produtor de livros, que terão necessariamente de penetrar esses circuitos comerciais, obstruídos agora pelo tráfego de dragões e quimeras voadoras. Por mais longe que nos sintamos do fenómeno, é impossível não sentirmos esse obstáculo.
E senti-o precisamente há uns tempos, quando, após o envio de alguns dos nossos títulos como amostra, procurei chegar à fala com o responsável pelo "produto livro" (e apenas este produto, atente-se) de uma grande superfície. Após conferir que os livros não tinham atravessado esse vasto hiato entre a secretária do correio recebido e o seu gabinete (
"mas pode sempre enviar outros, ao meu cuidado"), a conversa rumou finalmente ao assunto. E quanto a este, havia pouco a conversar. Sensivelmente agastado pela proliferação de editoras e de livros, o responsável manifestou-se indisponível para a simples de tarefa de aferição da qualidade do produto pelo qual era responsável (
"se tivesse de ler livros, não fazia outra coisa"), cortando uma resenha dos títulos que achávamos passíveis de estarem à venda numa grande supefície com a pergunta:
"algum dos vossos títulos vende tanto como o Harry Potter?"A essência desta argumentação não é, creio, e infelizmente, apanágio de responsáveis pela compra de livros de grandes empresas. O paradoxo aqui encerrado – um vendedor que se queixa da abundância do produto de cuja venda depende o seu negócio – é um sinal evidente da incapacidade dos sectores da revenda para diversificarem e enriquecerem a oferta, face ao filão monotemático que tem, qual maná, alimentado toda a indústria. Terá sido este o maior efeito da varinha mágica de Potter: a multiplicação do pão,
e apenas do pão (esquecendo o peixe e o vinho, mas com alguma dose de manteiga de amendoim pelo meio, dado o público alvo), criando uma dieta rica em hidratos de carbono e gordura mas à qual falta a fibra que permite ao revendedor ser proactivo e antecipar e explorar filões alternativos: em suma, que lhe permita ser o que se supõe que deve ser. O resultado: vendedores que só querem vender o que já foi vendido aos milhares por outros e que se queixam do facto de terem de usar a inteligência comercial de que são supostamente munidos para seleccionar entre a vasta oferta que é o sustento e a justificação do seu emprego.
Se unirmos esta monomania temática à crescente amnésia dos revendedores (leia-se atrás a série de posts sobre a "descoberta" das edições de bolso) e à voraz concentração de editoras independentes sob a alçada de grupos de
media pouco habituados a vozes independentes ou dissonantes, que mercado teremos a curto prazo?
(PM)